Uma boa relação médico-paciente, interesse, imparcialidade e empatia são pré-requisitos importantes para lidar com os migrantes traumatizados. As explicações psicológicas devem antes ser evitadas.
Uma parte dos migrantes no nosso país provém de ambientes de vida que se caracterizam pela pobreza, negligência, violência e guerra. A emigração e o começo completamente novo num ambiente estrangeiro são um enorme fardo para estas pessoas e colocam grandes exigências à adaptabilidade dos indivíduos e famílias. Os migrantes traumatizados são mais vulneráveis psicológica e fisicamente em comparação com a população média. Entre outras coisas, têm um risco significativamente maior de desenvolver doenças mentais tais como depressão, transtorno de dor somatoforme ou transtorno de stress pós-traumático [1]. Os médicos de família têm uma função importante na avaliação e tratamento de migrantes traumatizados, uma vez que são normalmente o primeiro ponto de contacto médico para estas pessoas. Especialmente em pacientes muito tensos, com queixas mutáveis e fortes reacções vegetativas, deve sempre pensar-se na possibilidade de traumatização sofrida. Em muitos casos, o tratamento bem sucedido desses pacientes por médicos de clínica geral envolve a cooperação com outros especialistas tais como psicoterapeutas, assistentes sociais, agências de ajuda e agentes de integração.
O que traz os migrantes traumatizados para a prática médica? Dores de costas, dores de cabeça e outras dores músculo-esqueléticas estão frequentemente no topo da lista, seguidas de problemas de estômago e distúrbios do sono [2]. Os médicos de clínica geral sentem-se frequentemente inseguros sobre como lidar com problemas de saúde mental, traumas ou tortura quando falam com refugiados. Suspeitam de ideias estranhas de doença ou temem reacções fortes quando falam de experiências traumáticas. No caso de requerentes de asilo e refugiados reconhecidos que vêm de países com frequentes violações dos direitos humanos, os seguintes sintomas levantam suspeitas de terem sido sujeitos a abusos ou torturas:
- Dor crónica e queixas de curso variável (incluindo músculo-esquelético, cabeça, estômago, tracto geniturinário); os sintomas são frequentemente apresentados com uma angústia considerável
- Consequências visíveis das lesões (cicatrizes, perfurações do tímpano, deformações dos pés)
- Nervosismo e sobreexcitação vegetativa (suor)
- Perturbações crónicas do sono (ansiedade, pesadelos com inquietação motora e choro)
- Expressão de medo, raiva, desconfiança, resignação e impotência (também como sentimentos de contra-transferência)
- Mudanças frequentes de consultas médicas e/ou de emergência devido à alteração dos sintomas.
Como comunicar, como investigar?
As entrevistas de exame devem ser conduzidas de forma suave e predominantemente orientada para o paciente, num ambiente de confiança. As instalações, a disposição dos lugares e o comportamento do médico devem transmitir uma sensação de segurança; deve-se evitar stress desnecessário e potenciais desencadeadores, tais como longos tempos de espera ou ser deixado sozinho numa sala. O estilo de comunicação do profissional deve transmitir empatia e transparência; ouvir e transmitir activamente informação compreensível deve ser equilibrado. O modo de expressão e o estilo de falar devem ser adaptados à outra pessoa, na medida do possível, mas sem serem ingratos ou infantilizantes. A utilização de termos técnicos, bem como a patologização prematura – especialmente com termos psicológicos – deve ser evitada [3,4]. Os migrantes traumatizados têm geralmente dificuldade em falar concretamente sobre as suas experiências e sintomas. Alguns receiam ser vistos como doentes mentais ou perder o controlo. Só quando uma base sustentável de confiança tiver sido estabelecida é que estas pessoas começam a falar. É uma boa prática deixar o paciente decidir quando quer começar a falar sobre o que já experimentou. As seguintes dicas vão ajudá-lo a começar com este tópico difícil:
- Assegurar a compreensão linguística: A compreensão mútua deve ser suficientemente assegurada não só em questões factuais simples, mas especialmente em questões emocionalmente estressantes. Se possível, consultar uma ajuda de tradução independente [5].
- Dar informações: Explique as suas intenções em termos simples e claros. Fornecer informação aberta sobre o procedimento e objectivos do exame, bem como sobre os direitos do doente (por exemplo, sigilo médico).
- Comunicar a segurança: Ao arranjar os lugares e na situação de exame, pensar na necessidade não expressa da pessoa em questão em termos de segurança. Observar rotas de fuga e distância, fazer movimentos calmos e estabelecer qualquer contacto físico necessário de uma forma determinada mas cuidadosa.
- Não conduzir “interrogatórios”: Um exame médico pode funcionar como um estímulo chave (gatilho) para uma reexperiência traumática. Evitar conduzir as conversas ao estilo de uma entrevista e extrair informações dos pacientes de forma demasiado investigativa
- Evitar o activismo: Não se apressar a fazer exames especiais. Muitas vezes há resultados suficientes de exames anteriores (história médica!) e certos procedimentos técnicos podem desencadear memórias de tortura. Uma vez estabelecida uma relação de confiança, exames como CT, MRI ou EEG são também razoáveis e são geralmente tolerados sem problemas (após boa informação).
- Ter tempo e paciência: Muitas coisas só podem ser discutidas depois de uma relação de confiança ter sido estabelecida. Deixem as pessoas envolvidas tomar a iniciativa de decidir o que deve ser dito e quanto deve ser dito. Para as pessoas traumatizadas é muito importante ter um sentido de controlo sobre a situação. Não apanhar pacientes desprevenidos com perguntas ou sugestões surpreendentes
- Pense nos familiares: inclua os cônjuges e filhos dos pacientes nas suas considerações: “Se acordar à noite, … se estiver nervoso e não for muito resistente durante o dia, … se puder voar fora do cabo, … como é para a sua mulher ou para os filhos”?
- Considerar a situação da vida real: Interessar-se pelas condições de vida no país de origem, as razões da migração, a história da fuga, a história da integração e os planos futuros. Muitos migrantes trazem consigo competências específicas e têm expectativas e esperanças associadas à migração que não correspondem à sua situação de vida actual. As dificuldades reais da vida actual, tais como o estatuto de residência, a pobreza, os problemas com o emprego e a educação ou a educação dos filhos sobrecarregam subjectivamente alguns doentes mais do que os traumas do passado [6].
- Interesse na “agenda do doente”: Pedir as ideias do doente sobre a doença e responder-lhes de uma forma imparcial. Por um lado, estas ideias expressam os conceitos médicos adquiridos no país de origem; por outro lado, reflectem também experiências traumáticas: “A dor vem da célula húmida, dos inúmeros espancamentos”; “Ameaçaram-me que nunca mais poderia ter relações sexuais sem dor”; “Injectaram pequenas lascas de metal no meu corpo; ao longo dos anos, estas irão viajar até ao meu coração e assim matar-me”.
- Abordar experiências de violência e experiências traumáticas uma vez estabelecida uma relação de confiança: Uma possível introdução ao tópico sensível pode ser: “Sei que muitas pessoas no seu país de origem são severamente abusadas pela polícia ou outras forças de segurança. Já experimentou algo semelhante e gostaria de falar sobre isso”?
- Abordar e explorar directamente os sintomas psicológicos: Em contraste com os sintomas corporais, as pessoas afectadas são menos susceptíveis de mencionar espontaneamente as suas queixas psicológicas. Uma abordagem activa alivia o fardo: “Sei por outros refugiados que sofreram violência que eles … sofrem de distúrbios persistentes do sono, … ter fantasias ou pesadelos terríveis, … têm medo de ficar loucos, … têm medo de perder o controlo sobre si próprios. Conhece sinais semelhantes em si mesmo”?
- Promoção de recursos – evitar a patologização: A reacção ao trauma deve ser entendida como um mecanismo de protecção mental fundamentalmente normal a uma situação extrema. A tortura e as pessoas traumatizadas pela guerra devem ter a sensação: “Não estou louco”. A patologização desnecessária deve ser evitada. A ênfase nos recursos existentes deve promover a resiliência e permitir desenvolvimentos progressivos.
Dor
Estreitamente interligados com o transtorno de stress pós-traumático (TEPT), depressão e problemas de vida pós-migratórios [7] são condições de dor que estão entre as razões mais frequentes de consulta nas práticas de GP. A dor crónica é vista em até 88% dos refugiados com TEPT [8]. A dor pode ser generalizada no sentido de uma doença dolorosa ou pode ser localizada; pode ocorrer com descobertas físicas determináveis, mas também sem descobertas documentáveis. A fisiopatologia da dor crónica envolve vários mecanismos: expansão neuroplástica das estruturas mediadoras da dor, sensibilização central da dor e ancoragem mnéstica da dor no sentido de um processo de aprendizagem, reactivação e aumento da dor através do medo [9]. Experienciar a dor é uma das experiências básicas de cada ser humano; lidar com a dor pode ser visto como a soma das experiências de vida. Cada pessoa enfrenta sozinha a dor, com todos os seus recursos pessoais, as suas experiências passadas, a sua confiança e os seus medos.
Testemunhos
Ao cuidado de pessoas traumatizadas e torturadas, pede-se frequentemente ao GP que forneça certificados. Deve-se comentar a capacidade de trabalhar, tomar uma posição na reforma ou tornar possível um benefício com um certificado médico, seja um colchão melhor, uma educação, um apartamento maior. Recordemos que por vezes o médico de família é o único aliado que os refugiados conhecem. Depositam grandes esperanças, muitas vezes irrealistas, no efeito dos certificados médicos. Não é fácil explicar as possibilidades muito limitadas de influência médica neste país. Uma das tarefas mais difíceis é comentar a capacidade de trabalho de uma pessoa. Como GPs, por vezes conhecemos o local de trabalho e as condições de trabalho em que os refugiados trabalham; isto pode ajudar-nos a fazer declarações concretas sobre a capacidade de trabalhar. Contudo, muitas vezes temos de confiar no que a pessoa diz e devemos declará-lo como tal. As avaliações devem ser realizadas por avaliadores experientes com conhecimentos e aptidões para lidar com migrantes traumatizados [10].
Conhecer os seus próprios limites – trabalho interdisciplinar
Os GPs sentem-se frequentemente sobrecarregados no tratamento de refugiados e requerentes de asilo, desafiados tanto por dificuldades estruturais (língua, falta de tempo) como por dificuldades relacionadas com o conteúdo (trauma, historial de voo, problemas de integração). As reacções a ser esmagado podem incluir cinismo, exaustão, polipragmasia e comportamento subliminarmente discriminatório. Para evitar isto, os grupos de intercepção e balint, bem como os círculos de qualidade, são altamente valiosos. Uma discussão colegial de situações difíceis, aprender com as experiências uns dos outros, partilhar situações difíceis são técnicas comprovadas de GP ao lidar com situações que ameaçam sobrecarregar o indivíduo. O médico de família deve procurar ajuda especializada em tempo útil: as situações difíceis e stressantes devem ser encaminhadas para tratamento psiquiátrico. Muitas vezes, os cuidados psiquiátrico-primários conjuntos revelar-se-ão úteis, pelo menos durante fases difíceis.
Mensagens Take-Home
- No caso de migrantes com queixas em mudança e níveis de tensão elevados, deve sempre pensar-se na possibilidade de traumatismo.
- Uma relação médico-paciente de confiança, interesse, imparcialidade e empatia são pré-requisitos importantes para explorar as histórias de trauma dos migrantes.
- Uma atitude calma e respeitosa, uma abordagem transparente aos exames e o fornecimento de informação clara e compreensível permitem aos migrantes traumatizados construir confiança com o médico.
- Reconhecer a difícil história de vida e respeitar o sofrimento são centrais para um tratamento bem sucedido; as explicações psicológicas devem antes ser evitadas.
Literatura:
- Steel Z, et al.: Associação de tortura e outros eventos potencialmente traumáticos com resultados de saúde mental entre populações expostas a conflitos e deslocações em massa: uma revisão sistemática e uma meta-análise. JAMA 2009; 302(5): 537-549.
- Burnett A, Peel M: A saúde dos sobreviventes da tortura e da violência organizada. Br Med J 2001; 322: 606-609.
- Kläui H, Frey C: Tortura e vítimas de guerra na prática geral. Swiss Med Forum 2008; 8(46): 891-895.
- Schwald O, Smolenksi C: Refugiados traumatizados e vítimas de tortura na prática geral. Prim Hosp Care 2016; 16(3): 55-58.
- Morina N, Maier T, Schmid Mast M: Perdido na Tradução? – Psicoterapia com o uso de intérpretes. Psychosom Med Psychol 2010; 60(3-4): 104-110.
- Patel N, Kellezi B, Williams AC: Intervenções psicológicas, sociais e de bem-estar para a saúde psicológica e o bem-estar dos sobreviventes da tortura. Cochrane Database Syst Rev 2014 Nov 11; (11): CD009317.
- Aragona M, et al.: O papel das dificuldades de vida pós-migração na somatização entre os imigrantes da primeira geração visitados num serviço de cuidados primários. Ann Ist Super Sanita 2011; 47(2): 207-213.
- Teodorescu DS, et al: Dor crónica em ambulatórios multi-traumatizados com antecedentes de refugiados reinstalados na Noruega: um estudo de corte transversal. BMC Psicologia 2015; 3(1): 7.
- Egloff N, Hirschi A, von Känel R: perturbações da dor em pessoas traumatizadas – aspectos neurofisiológicos e fenomenologia clínica. Prática 2012; 101(2): 87-97.
- Hoffmann-Richter U: A migração faz as pessoas adoecerem? Sobre a avaliação de migrantes com ajustamento, stress e perturbações somatoformes. SUVA-Med Mitteilungen 2002; 73: 64-77.
PRÁTICA DO GP 2018; 13(7): 37-39